Eu sempre achei estranho a maneira com que outras pessoas contavam seus sonhos. As histórias pareciam sempre muito vagas, com coisas que acontecendo som começo ou fim e narrativas curtas demais para poder chamar de história. Meus sonhos não são assim. Quando eu lembro dos meus sonhos, as histórias são longas, ricas em detalhes e geralmente terminam comigo dando conta de que estava sonhando. 
Em 2015, por convite de um amigo, comecei a publicar meus sonhos em um grupo de Facebook chamado "Interpretação Intuitiva de Sonhos", ou algo do tipo. Os sonhos escritos no dia seguinte eram sempre curtos, fruto do esquecimento, mas os que eram escritos durante a madrugada, geralmente ao acordar após ouvir um barulho qualquer, esses eram enormes.
Os seis primeiros meses de 2020 foram particularmente produtivos, graças ao vizinho alérgico e insone que precisava bater a porta para impedir que o gato do companheiro de república entrasse em seu quarto.
Em 2023, numa tentativa de retomar algum tipo de prática artística, comecei a editar esses textos e publica-los acompanhados de uma ilustração.
Apenas 13 desenhos foram feitos e pouco mais do dobro disso teve o texto editado. Hoje já são mais de 50 páginas de sonhos colecionados entre 2015 e 2024 aguardando alguma edição ou desenho.
10 de abril de 2015
Sonhei que um cara foi me entregar uma coisa que eu tinha comprado. Eu estava morando nos EUA. Ele tocou a campainha, eu desci para ir buscar, digitamos uns códigos na máquina na parede do prédio para confirmar minha identidade e ele me entregou um envelope de papelão quadrado.

"Você é músico né?" — O entregador me disse, pensando que aquilo era um disco. "Não sou não. Isso era pra ser um Lego. Não sei o que é" — Respondi. Nossa conversa era em inglês, mas, de repente, ele começou a falar em francês e disse, com um sotaque bem carregado, que já tinha morado em Mogi das Cruzes.

"Ah, você é brasileiro? Eu sou também" — Falei em português. "Não." — ele respondeu — "Sou da Romênia. Sou cigano."

Ficamos conversando mais um tempo, mas falávamos muito baixo e não dava para escutar direito.

Acordei.
22 de abril de 2015
Peguei o elevador do meu prédio e Harrison Ford estava lá dentro, ou entrou depois, não lembro exatamente. Achei estranho e fiquei em silêncio. Descemos no térreo, eu saí a pé pelo portão e ele foi para a garagem.

No dia seguinte aconteceu a mesma coisa, mas no elevador ele quebrou o gelo. "E aí? Gostou do novo teaser do Star Wars?" - me perguntou. Respondi que gostei e conversamos um pouco sobre nossas expectativas. Perto da porta do prédio, enquanto descia para a garagem, ele disse: "Fico aqui até a semana que vem. Passe lá em casa que eu te conto um pouco mais da história!"

Depois, na calçada do asilo da rua Barão de Campinas, eu estava sentado em uma mesa de bar  contando essa história para alguns parentes enquanto esperava pelo meu prato.

Harrison Ford não disse, e eu não vi, mas no sonho eu tinha certeza de que ele dirigia um Santana azul claro igual ao do senhor que mora no prédio e que eu chamo carinhosamente de Anthony Hopkins.
03 de maio de 2015
Estava caindo de uma altura muito grande quando percebi que podia mudar a configuração do chão e amortecer minha queda. Melhor ainda, podia fazer o chão virar uma cama elástica e me jogar pra cima com muita velocidade.

Depois veio a sensação de que eu sempre fui capaz de fazer isso e que os outros quatro caras que estavam no ônibus comigo também tinham super poderes. Formávamos um grupo de super-heróis que patrulhavam a cidade de ônibus.

Em determinado momento uns zumbis metálicos voadores começaram a ameaçar a cidade e eu descobri que também sabia escalar paredes e que se eu pisasse na cabeça dos zumbis metálicos eu conseguiria pular ainda mais alto.

Acordei.

PS. Não jogo Mario faz tempo
08 de maio de 2015
Estava conversando com o Lula quando começou um panelaço. Ele ficou meio constrangido, mas daí eu peguei a caixa de som do rádio, coloquei na janela e pus para tocar o forró do "Na minha casa todo mundo é 13". Lula deu risada e bebemos cachaça vendo os apartamentos piscarem suas luzes.

Fim.

PS.: A ideia da caixa de som na janela eu tinha tido no panelaço desta semana, o sonho, aparentemente, só serviu para reforçar.
13 de maio de 2015
Eu estava trabalhando em um musical da Lola, era um dos responsáveis pelos drones do espetáculo, quando me avisaram que a Alice tinha sido deportada da Alemanha por ter perdido um torneio de xadrez que ela nem precisava jogar. Era de um preparatório para o campeonato mundial.

Um monte de gente se uniu para dar forças para ela e ajudar nos treinos. Rolou uma montagem estilo Rocky Balboa. No dia do torneio fiquei sabendo que meu antigo emprego precisava de mim e eu seria demitido se não comparecesse (não sei como, já que eu não trabalhava mais lá). Rubens me avisou em cima da hora disso. Ele tinha ficado sabendo pelo Henrique, que ainda trabalhava lá, estava tentando passar a perna neles por mim. Era também o mesmo dia em que eu precisava operar os drones pro musical.

Eu percebi a enrascada, mas também percebi que estava sonhando e resolvi acordar.

Acordei.
21 de maio de 2015
Adam Savage, um dos caras do Mythbusters, tinha escrito um roteiro. Tarantino tinha gostado da história e decidiu produzi-la. Seria seu novo filme.

Enquanto me contava sobre isso, Adam olhou para o lado e uma imagem começou a surgir na parede, estávamos em sua oficina. A câmera (eu estava vendo tudo em terceira pessoa) foi entrando na imagem até o sonho virar o próprio filme. 

A personagem principal era uma moça muito parecida com Letícia Sabatella. Ela era a dona de um supermercado/casa de convivência/spa em que as pessoas iam para descansar. Era um ambiente muito chique, uma mistura de chateau (pense nas decorações cafonas de lugares chiques paulistanos) com casa no campo de cidade de inverno.

Tudo corria bem, mas esse lugar não era real. Ele só existia dentro da cabeça de uma moça cujo nome eu não lembro, mas que era interpretada por Uma Thurman. Essa moça era muito pobre, mas ela era muito foda e conseguiu uns equipamentos no mercado negro para conseguir acessar essa rede onde as pessoa iam para viver suas fantasia. Tipo um videogame.

Ela comprou esses equipamentos piratas e conseguiu não só entrar como também estabelecer um servidor próprio em que as pessoas poderiam acessar o tal spa/supermercado/casa de campo.

Acontece que ela estava tendo algum problema com os servidores e as coisa não estavam funcionando direito no tal spa. O diretor do lugar, era um espaço enorme e o servidor só era usado por gente muito rica, era Jon Hamm, de Mad Men, estava muito puto com ela por causa disso. Esse cara, assim como as outras pessoas que trabalhavam lá, eram todos avatares de alguém real, mas, diferentemente da protagonista, eles tinham grama para acessar as coisas e alguns até recebiam para isso. No sonho não ficava claro como isso funcionava.

Ele estava puto e começou a pressionar para que as coisas que estavam erradas fossem arrumadas. Letícia Sabatella foi para um quarto, meio desesperada, chorou muito e depois dormiu. Quando a pessoa dorme nesse lugar, ela acorda na vida real e sai do ambiente virtual. Letícia Sabatella dormiu e acordou Uma Thurman.

Ela estava com muita fome e em um ambiente muito sujo. Era um tipo de barraco, mas não era uma favela. Mais parecia que ela estava na cabeça de um morro, no meio de um mato. Era noite, tinha pouca luz e muita neblina. Ela chorou muito. Depois ela fez uns bagulhos que eu não lembro e ficamos sabendo como funcionava a conexão delas com os servidores. Eram umas poucas placas ligadas a uns fios, que por sua vez eram ligados a um tipo de agulha, bem mais fina do que aquela que usam no Matrix, só que no lugar de espetar a agulha na onde a agulha deveria ser espetada, Uma Thurman, que não tinha o terminal instalado no corpo dela, tinha de enfiar a agulha num nervo do joelho. O processo doía muito e ela sempre gritava demais, por isso a área isolada onde ela se conectava.

Ela entrou. Saiu do servidor dela para entrar em outros. Para fazer isso ela precisava reiniciar a conexão offline primeiro. Os servidores oficiais eram muito protegidos e para ela se conectar neles era muito perigoso, pois eles conseguiriam desativar os equipamentos delas.

Ela se conectou a um servidor que era uma espécie de casa de banho e assumiu uma identidade que fazia ela se parecer comigo, mas como ela não tinha as minhas credenciais para estar lá, se algum oficial a escaneasse ela seria descoberta. Nessa casa de banho ela tinha uma missão: roubar o chip de identificação de duas pessoas. Quando ela saiu do vestiário do lugar, que era onde você logava, ela/eu encontrou Lola e Nicole. Conversaram e depois resolveram jogar um tipo de jogo. Cada um tinha seu marcador de vida e conseguia tirar a vida do outro atingindo a pessoa com objetos pesados. Lola e Nicole se uniram contra ela e começaram a jogar. Virou uma montagem de cena de ação, com direito àquele momento em que a pessoa está perdendo mas consegue virar o jogo. Esse momento foi quando Nicole estava com um pouco de vida e tinha conseguido encurralar Uma/eu, que também tinha pouca vida, mas daí Uma/eu conseguiu virar e derrotar Nicole. A coisa é que quando a vida acabava, a pessoa não saia do jogo, ela podia ajudar quem ainda estava vivo do time, mas sem poder atacar. Assim, Nicole ajudou Lola e elas ganharam. Rolou uma piadinha, as duas ficaram tirando sarro da Uma/eu e foram embora.

Quando elas chegaram na frente do vestiário, elas se deram conta de que estavam sem o chip de identidade que permite que você volte ao vestiário e se tocaram de que haviam sido roubadas. A câmera cortou para mim e mostrou os chips na mão da Uma/eu e mostrou ela sorrindo.

Em seguida rolou uma mini perseguição pelo lugar que acabou com a Uma/eu escondida atrás de um pano preto, um tipo de lona, dentro do banheiro dos funcionários. Era um lugar sujo e tinham muitos imigrantes indianos lá dentro. Mas a lona era pequena e tinha um furo bem perto do rosto. Toda vez que ela/eu respirava o furo abria e fechava. Enquanto estava atrás da lona, ela/eu começou a mudar de servidor. Esse era um processo demorado e como não era uma pessoa com equipamentos oficiais, demorava ainda mais. Além disso, era preciso criar mecanismos de bloqueio para conseguir fugir dali sem ser seguida e como tudo estava sendo feito fora do vestiário, que era a área oficial de login, também tinha de burlar a segurança para poder trocar de servidor e fugir.

Ela/eu conseguiu sair, mas a conexão não estava boa. Ela foi do lugar do clube de água para um mundo do Batman. Chegando lá ela estava no meio de uma cena, parecia um filme do Christopher Nolan. Ela era o Michael Caine/Albert e o Bruce Wayne estava na beira de um penhasco chorando. Albert saiu correndo do carro, jogou o Bruce no passageiro e se escondeu atrás da roda. Ela/ele tinha ouvido sirenes e como a conexão ainda não estava boa, os dois servidores meio que trabalhavam espelhados.

Atrás da roda do carro, a câmera entrou em primeira pessoa e ficou tudo preto. Dava pra ouvir a voz dos seguranças se aproximando e dos carros de polícia ao mesmo tempo. Ela/ele prendeu a respiração para não fazer o furo abrir, mas não durava muito tempo. Quando ela espirou, uma frestinha abriu no preto da tela e revelou um cachorro. O buraco fechou. Abriu de novo quando ela inspirou e o cachorro estava mais perto. Ficou tudo preto. De repente um cachorro rasgou o preto e começou a latir, me dando um puta susto e me fazendo acordar.
12 de julho de 2015
Estávamos todos organizando uma festa para comemorar a chegada da Alice no Brasil. Ela havia ganhado uma bolsa de pesquisa por aqui e ia fazer um documentário sobre um funkeiro carioca. A festa foi legal, todo mundo se divertiu, mas sabe quando acontecem coisas que não aparecem no sonho? Algo que não existe, mas que você tem total conhecimento do contexto.

Bem, a coisa com a pesquisa da Alice era que o funkeiro em questão era um cara chamado MC Bilau e ele era uma mistura de funk ostentação com proibidão. Ele tinha uma rola enorme e deixava ela pra fora durante os shows, cheia de anéis de ouro e tal.

Ninguém na festa estava chocado pela existência do MC Bilau. Nosso pequeno círculo social estava bem ok com isso.

Foi isso.
10 de setembro de 2015
Sonhei que estava no Japão e precisava pegar um livro emprestado em uma biblioteca, mas ela ficava em outra ilha. Olhei no mapa do meu celular e, como era perto, resolvi ir nadando.

Cheguei lá e a bibliotecária queria saber como eu ia levar o livro para casa, já que cheguei nadando. Fiquei na dúvida. Não tinha pensado nisso. Olhamos pela janela e ela me mostrou o mar bravo, não conseguiria ir embora de barco também.

Em um canal, jovens andavam de Jesus Bikes, que eram mobiletes que andavam sobre a água. Um animal típico da região repelia a água e os moleques japoneses enchiam os pneus das motos com eles para dirigir sobre o espelho d'água. Achei legal e decidi levar a coisa para Cambuí.

No meio da ideia dei uma unhada, sem querer, na minha teta e acordei. A unhada foi real. Hoje de manhã cortei as unhas. Tem um cortezinho na minha teta.
09 de novembro de 2015
Sebastião Salgado entra na sala de aula meio atrasado e sem graça.

"Me desculpem, mas eu não estou acostumado a esse tipo de coisa”.
24 de janeiro de 2016
Eu era uma moça que tinha inventado um jeito maluco de dirigir ônibus sentado no banco do passageiro. Minha invenção era pra poder ajudar meu irmão, cadeirante, a dirigir.

Pegamos o ônibus, daqueles amarelos escolares americanos, e fomos até a loja do meu avô mostrar a invenção para ele, que achou muito bonito. A loja vendia de tudo, mas tinha uma vasta coleção de instrumentos musicais.

Quando saímos de lá, várias equipes de TV já se preparavam para fazer uma reportagem sobre minha invenção, mas consegui fugir deles.

Fui em direção a área alagada da cidade. O ônibus não era mais um ônibus, era daqueles barcos rasos com um ventiladorzão nas costas. Eu não era mais uma moça, era eu mesmo.

Andei pela área alagada e vi várias casas destruídas. Gente muito pobre morando em condições péssimas, acumulando lixo e coisas encontradas nas casas abandonadas. Dava pra ver algumas tocando banjo. Tentei fotografar, mas estava indo rápido demais.

No meio do caminho, um sujeito estava sentado no alagado, embaixo de um gol de futebol e tocando banjo. Dei meia volta para fotografá-lo, mas vi uma mulher chamando dois caras para ajudar a curar o filho dela.

Um deles pediu para eu ir junto. Achei que daria uma boa foto e fui. Peguei minha espingarda e entrei na casa.

Lá dentro, depois de subir algumas escadas, um menino meio gordo estava sentado de frente para uma lareira. A barriga dele estava completamente aberta, com os órgãos expostos, mas não sangrava. Era uma ferida gigante.

As pessoas começaram a rezar. Eu dei a volta na cena e fiquei de frente para o machucado e de costas para o fogo. De repente, vi que uma bola de papel estava na minha mão e que ela tinha o mesmo formato que a ferida do menino. Coloquei fogo no papel e a ferida começou a acender. Era um demônio. Rezamos e o demônio, aparentemente, foi embora. Agora era só uma ferida normal.

Alguma outra coisa começou a acontecer, mas eu não percebi e acordei.
04 de março de 2016
Estava acontecendo uma manifestação no Largo do Arouche e a polícia estava reprimindo geral. Parecia uma batalha campal. Tinham uns pneus de trator queimando no meio da rua e muita fumaça. Bomba pra caralho.

Nessas, eu tava no protesto e comecei a fotografar. Uma bomba veio na minha direção, mas ela era gigante e eu não conseguia nem chutar, nem jogar para longe. Veio muito gás e eu decidi correr para casa.

No corredor do prédio eu vi que tinham umas manchas de tinta branca perto da escada. Comecei a seguir e vi que era um vandalismo, umas pixações. Petralha, esquerdista, essas merdas... A tinta e os xingamentos iam pra minha porta. Nessa hora eu entrei em pânico e vi que a porta do apartamento estava quebrada e de dentro saía uma fumaça preta.

"Não é possível isso! Filhos da puta! Só porque eu  impedi a demissão dos porteiros do prédio? Isso só pode ser um sonho"

Acordei no mesmo lugar, mas a porta estava fechada. Tinha tinta nas paredes mas ninguém entrou em casa. Meio aliviado, eu virei para a Luísa e comentei: "E aí? Que tal foi sua primeira bomba de gás". Ela achou meio engraçado, mas sério.

Voltei para o corredor para ver se a câmera de segurança teria conseguido filmar quem fez isso na minha porta quando surgiu pela escada o Caetano carregando o Henrique nas costas. Eles estavam no protesto, acho, mas Henrique não parava de vomitar. Estava passando muito mal.

Corri para o interfone para avisar o porteiro e ouvi, numa linha cruzada, o subsíndico reclamar com o porteiro que ele tinha deixado entrar no prédio alguém vomitando. Fiquei puto e comecei a ligar pro prédio todo tentando avisar o que estava acontecendo.

Acordei e achei um sonho divertido.
12 de janeiro de 2017
Sonhei que era um padre e que havia sido incumbido de assumir um pequeno enclave católico em uma cidade no interior. Embora todo mundo falasse português, a cidade tinha um ar de pequeno vilarejo europeu. Provavelmente na península ibérica ou na Itália. Eram ares de "pobreza rural latina" do pós-guerra.

Cheguei na cidade de trem e um narrador me conduziu até trecho de terra sob a minha jurisdição. Era um narrador mesmo. Como num filme. Ele me explicou que desde que o último padre morreu, o lugar estava praticamente abandonado. Cabia a mim reerguê-lo. Aparentemente o padre também tinha funções como líder comunitário.

Andando em direção à casa onde habitaria, encontrei com uma espécie de monge. Era um senhor cego, idoso e que andava com ajuda de um bastão. Andava na mais completa escuridão. Sendo cego, não fazia a menor diferença. O cumprimentei e segui caminho.

Chegando no lugar me deparei com o tamanho do local. Maior do que imaginava. As ruas eram estreitas e pavimentadas com pedras portuguesas muito brancas, tão brancas que quase iluminavam a pequena vila. Muitas das casas eram feitas de pedra ou técnicas muito simples de construção. Os telhados eram baixos. Todas estavam vazias e algumas em ruínas.

Chamei por um nome, não consegui distinguir qual, mas ninguém apareceu. Estava completamente deserta. Entrei em um dos imóveis, uma espécie de barracão, e comecei a explorar o local. De repente, ouvi passos. Era o funcionário da Cia. Ferroviária. Um sujeito careca e vestido com roupas formais simples.

— Senhor, suas malas não foram localizadas. O senhor tem certeza que as trouxe? Eram só duas?

Respondi que sim. Voltei até a estação e conferi que, de fato, minhas malas não estavam mais lá.

No caminho de volta para o vilarejo, comecei a escutar barulhos estranhos enquanto andava. Não havendo iluminação e sem minha tocha, era impossível identificar do que se tratava. Cheguei até uma pequena praça e gritei:
— Quem me segue?
Um raio caiu do céu e no clarão do relâmpago vi um vulto. Imaginei ser o monge cego.
— Quem me segue? - gritei novamente.
Do meio da escuridão, uma de minhas malas foi lançada e caiu aos meus pés. Pelo o brilho das pedras brancas, via pernas andando de um lado para o outro, me cercando, em uma movimentação frenética.
— Quem me segue? Identifique-se!
Uma explosão. Na minha frente, segurando uma enorme estaca coberta de pregos e arame farpado, surge uma mulher enorme. Nua. Suas pernas dobravam para trás enquanto andava, como as patas traseiras de um bode. Estava suja de sangue e berrava. Seu seio esquerdo estava todo marcado e feridas negras contrastavam com a brancura azulada de sua pele.
Correndo, abri minha mala, peguei um enorme martelo e fui em sua direção. Ela atirou sua estaca em mim. Desviei. Peguei a estaca do chão e disse algumas palavras que não consegui entender.
— Sou toda sua — ela respondeu.
Atirou-se ao chão e, contorcendo-se com uma expressão de dor e prazer, deixou seu seio esquerdo desprotegido. Fui até ele, posicionei a estaca e comecei a martelar. A cada pancada a estaca se desfazia um pouco mais. Sua ponta ficava mais chata, a madeira rachava, expandia, mas não penetrava a pele dura da mulher. Ela ria. Divertia-se. Eu tentava, tentava, mas não conseguia feri-la.
O clarão que iluminou a rua foi desaparecendo enquanto um zumbido começou a tomar conta dos meus ouvidos. Cada vez mais escuro, já não era possível ver mais nada, só ouvir os risos da mulher e as pancadas do martelo.
Cada vez mais alto, o zumbido me acordou. Um pernilongo.
05 de novembro de 2017
Estava ajudando um casal americano a cuidar de seus quatro filhos numa ida deles a um restaurante brasileiro. Babá. Estávamos em São Francisco. O pai carregava uma criança amarrada no peito, uma nas costas e as outras duas estavam num carrinho de gêmeos que ele empurrava. A mãe ia na frente.

As ruas estavam muito cheias e era preciso pegar uma van para chegar até o restaurante. Andamos pela multidão como foi possível até encontrar a fila preferencial, que ficava em uma ciclovia na beira da calçada. Conversamos com algumas pessoas, todas muito surpresas com o número de crianças. Acho que biologicamente não seria possível serem todas da mesma mãe. As idades conflitam com o tempo necessário para a gravidez. Enfim.

Entramos na van e um dos caras do MythBusters estava lá. Ele era meu chefe. Eu era um imigrante e trabalhava como mão de obra barata no programa dele. Ele me reconheceu e conversamos no caminho até chegar ao restaurante. Foi uma conversa agradável.

O restaurante ficava em uma rua sem saída, perto da entrada dos fundos de um teatro (o Adam, o cara do MythBusters, ia se apresentar lá). Tinha um jardinzinho na frente e o prédio era uma casinha dos anos 50. O restaurante brasileiro chamava "Escravinha Negra". Fiquei em choque com o nome e expliquei para o casal americano o significado. Eles decidiram comer lá mesmo assim.

O maitre era um senhor mexicano muito parecido com o Cheech, do Cheech e Chong. Na fila para entrar fazia muito calor e o pai das crianças pediu para que jogassem fora a garrafinha de água dele. Foi ignorado. Ele estava sentado, com as crianças ainda amarradas, e não conseguia se levantar. Peguei a garrafa e joguei no lixo.

Nesse tempo na fila, o maître descobriu que no transporte que usamos para chegar até o restaurante havia quatro guitarras. Ele abriu uma das caixas e a guitarra começou a voar. Ele saiu voando junto, mas agora ele era uma mistura de Pac-Man com Mario, um Pac-Man de bigode e chapéu vermelho. O bigode ainda era o do Cheech. Ele tentava tocar a guitarra mas não conseguia, pois ela ficava se desviando dele.

O dono da guitarra era um demônio que estava na fila com a gente. Ele parecia com aquele personagem do Tom Savini em "Um Drink no Inferno", o caminhoneiro com uma pistola no pinto. O Sex Machine. Quando avisaram ele sobre o que estava acontecendo, ele olhou para o céu, onde a guitarra e o Pacman-Mario-Cheech voavam, e gritou: "Ei Filomena! Pode reagir!".

A guitarra levantou o braço e desceu com tudo, acertando o Pacman-Mario-Cheech em cheio. Ele fez um barulho engraçado e caiu no chão. A guitarra agora tinha um sorriso e fazia um som de gargalhadas. Todo mundo riu.

Acordei.

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